CANDURA

POR TITO DE ANDRÉA


Bode expiatório: uma candura por uma ofensa

E Arão porá ambas as suas mãos sobre a cabeça do bode vivo, 
e sobre ele confessará todas as iniqüidades dos filhos de Israel, 
e todas as suas transgressões, e todos os seus pecados; 
e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á ao deserto, 
pela mão de um homem designado para isso. 
Assim aquele bode levará sobre si todas as iniqüidades deles à terra solitária; 
e deixará o bode no deserto.
Levítico 16: 21-22


            O homem entra no espaço que escolheu, senta-se, abre o cartaz, nele os dizeres: TROCO UMA OFENSA POR UMA CANDURA. Qual o objetivo disso? Muitos perguntam, muitos sorriem, muitos passam. Qual o objetivo disso? O que é uma candura? O que é uma ofensa?
            A resposta para a segunda pergunta vem facilmente. Estamos no reinado da ofensa. A ditadura do ríspido, do bruto, do sangue e da saliva no olho. Vivemos essas pequenas violências o dia inteiro por todos os dias. Marcamos uma data no calendário para não sermos agressivos com o próximo, colocamo-la no meio das férias de fim de ano, aproveitamos para vender uma idéia e alguns produtos e pronto. Está instituído o dia de ser bom com o próximo. Um dia em 364, um em 365 em anos bissextos, e pronto.
            Nos ônibus, nos restaurantes, no trânsito, nas pequenas áreas de convivência, estamos sempre diante do absurdo, da pequena violência, da revolta gritada. Os não lugares se transformam em no man’s land, expressão que ao pé da letra quer dizer “terra de ninguém”, mas também se refere aos fronts de guerra. Transformamos esses não lugares em lutas por espaços e respeitos. Revoltamo-nos diante da grossura de um motorista de ônibus que grita. Revoltamo-nos contra a forma ríspida como determinado passante se dirigiu a nós. Revoltamo-nos contra todo e qualquer absurdo que se mostra sempre prontos para uma revolta brutal e violenta com as palavras.
            E nos tornamos iguais. Iguais. Iguais.
            E o que é uma candura? O que é essa doçura, esse deleite, essa ingenuidade, essa pureza? Tomando mais uma vez o imaginário judaico-cristão, a função do bode expiatório era essa. Tirar o pecado – a mancha, a queda – e trazer novamente a brancura inocente – tornar a todos cândidos. A candura é a minha arma contra o mundo. É a minha revolta. É a minha forma de dizer o meu não.
            Ouvi uma vez “esse aí é do tempo da candura”, e isso me encheu de uma forma muito estranha de dor. Sou do tempo da candura. O tempo onde não é preciso trocar violência por violência e onde responder candidamente não é o mesmo que fazer nada.
            Ouvi muito isso, “quer dizer que se eu te xingar você não vai fazer nada?”. Não. Eu farei. Reagirei com todo o poder da minha candura. A performance “Bode expiatório: uma candura por uma ofensa” é um manifesto vivo disso. A proposta é me tornar eu esse bode expiatório, me tornar eu esse ser que deve carregar o pecado do outro para torná-lo cândido novamente. Delicado.





            A candura deve ser uma arma. Uma flor contra um canhão. Uma árvore que cresce ao lado do muro da casa dos torturadores, que é permitida por ser inofensiva, mas que um dia vê suas raízes se confundido aos alicerces da casa e a derruba com sua força. A candura deve ser essa força de dar algo bom ao outro em vez de dar a outra face.
            Não quero dar a outra face. Quero dar de mim o melhor ao inimigo para que não seja mais preciso encarar o próximo como o inimigo.
            No dia de realização da performance eu ouvi diversos tipos de xingamento, dos mais brutos aos mais bobos (até mesmo bobo), e a eles devolvi sorrisos e palavras doces. Era divertido ver a reação das pessoas ouvindo aquilo. Era divertido ver a reação das pessoas querendo tirar de mim a violência, ver as pessoas questionarem a legalidade da violência, ver as pessoas compreendendo a candura. Ali eu salvei o dia. O meu dia, ao menos, foi salvo.
            Foi lindo. Pode ser mais. Quero ser isso todo dia, lançar fora a pele de lobo, lançar fora também a pele do cordeiro inocente e fraco que nunca reage e poder ser esse bode, esse bode que reage, que se revolta, mas de forma não violenta. Eu quero iniciar o tempo da candura, onde uma delicadeza valha mais que uma ofensa e um beijo seja menos motivo de escândalo que um soco.


Tito de Andréa, Restaurante Universitário (UFC), abril de 2011